O burro velho

O comboio partia às 11:47 de Campanhã e eu ainda tinha de apanhar a ligação em São Bento. Vinha do Tribunal, de um julgamento que não houve, ofegante a subir a calçada.
Senti-a, por ali, tentadora, e ei-la de súbito: a livraria das livrarias, a Chaminé da Mota.
Contava os minutos, arriscava perder o comboio, mas o desejo era mais forte.
O que queria? Nem sabia. Tinha querido entrar e estava ali. «Procura algo?», perguntou-me, amável, o dono. Nem sei como surgiu, mas ripostei: «Irene Lisboa!».
Estavam lá em baixo, as mulheres escritoras, todas juntas, em gineceu literário.
Enervado com a pressa, tartamudeando o «já tenho quase tudo dela», acrescentei, sem ser necessário um «deram-me agora mais uns quantos», e com o empregado em expectativa, deitei a mão a um «Queres Ouvir? Eu Conto», editado pela Portugália do Agostinho Fernandes.
Tenho-o agora aqui comigo, impossível lê-lo esta noite, porque vai ser mais uma madrugada de trabalho obrigatório.
«Tinham deitado um burro à margem, um burro velho. Que carga de ossos tão triste». Começa assim o primeiro conto. Sou eu!