A aldeia desterrada

Foi como se soubesse que estava ali e dirigiu-se-me esta tarde a mão para a estante onde estão os livros do Vergílio Ferreira e no primeiro volume do Espaço do Invisível, obra de ensaios, onde vem o texto polémico que escreveu para apresentar o Rumor Branco do Almeida Faria, ei-lo o «em memória de Irene Lisboa». Como se um acaso fosse determinação dos meus passos.
E li-o num instante, porque é breve, como se assim com ela me tivesse também encontrado numa aldeia na serra e no quarto andar na Rua de São Bernardo e notado o «seu porte, que tanto me impressionou, essa dignidade exterior, essa harmonia de ser, essa quase aparência de altivez que é apenas o respeito ou o orgulho de nós próprios e que traduzimos ainda pela palavra "nobreza"».
Humilde e sério - e nele mesmo a arrogância foi sempre uma forma de se inferiorizar, oferecendo-se à voragem dos impantes - o autor do Nítido Nulo surpreendeu nela «a sua comunhão com os interesses do povo, bem mais quente comunhão, bem mais fecunda, do que a minha, tão pobre e tão fiscalizada pelo que eu desejava "fidelidade" a uma ideologia», ela escritora de uma cidade mas em que «a Lisboa que habita os seus livros é a que relembra a aldeia, é uma aldeia desterrada, a que preserva o eco do que é belo na verdade primitiva».
Li para relembrar que, contra os preconceitos classistas de tantos literatos «toda a vida de gente simples não pode ser simplista» e para aprender que «uma mão cheia de nada só o é de coisa nenhuma quando o nada está em nós...».