«No convento onde fui internada aos seis anos, as coisas passavam-se de um outro modo. Lá não havia passeios nem liberdades, tudo era triste. Tanto assim que as férias me davam arrebatamentos. Foi para entrar no convento que me baptizaram. Sem filiação e com o sobrenome de ... Céu. Porque fui eu do Céu? Nunca o soube». Eis, contada no livro «Começa uma vida» a infância de Irene do Céu Vieira Lisboa. A obra é ilustrada com desenhos de Maria Keil do Amaral. Fui encontrar este, uma menina pela mão de seu pai. Ser órfão é muitas vezes ser-se feliz.
A Rua de São Bernardo
Subi a rua a pé olhando, o coração apertado, prédio a prédio, contando os números de porta. No 102 tinha morado, num quarto andar, Irene Lisboa. Temi que o prédio tivesse sido devorado pelo tempo, expulso por um daqueles favos a que hoje se chamam casas de habitação.
Esperava-me o pior. O edifício estava lá e ostensiva via-se na parede frontal uma placa assinalando ali a presença passada de alguém. Aproximei-me para ver que era, enfim, a homenagem dos moradores, carinhosos, à lembrança amiga de ali ter morado...o ministro Baltazar Rebelo de Sousa.
Quanto a ter ali habitado a autora de «Solidão», nem uma palavra de memória.
Lembrei-me, ao regressar a casa, neste domingo em que um vento cruel resolveu tresmalhar a cidade de tristeza angustiosa, das palavras com que ela abre o seu livro «Começa uma vida», que assinou como João Falco e que é, afinal, o relato dos primórdios da sua existência: «Vá-se embora daqui, esta casa não é sua!».
De facto não era, nem a casa nem a vida que assim a tratou.
Mulheres escritoras
Sobre Irene Lisboa escreveu Maria Ondina Braga, outra mulher escritora a quem dedico um blog, esta frase triste: «Há menos de duas décadas, todavia, esta cidade que ela tanto celebrou, este povo de quem foi um dos mais finos e fiéis cronistas, viram-na morrer com a mesma indiferença com que a tinham visto viver». A autora de «Angústia em Pequim» sabia o que era o amargo da solidão, a ânsia de ser-se amado.
O livro chama-se «Mulheres Escritoras», foi editado em 1980. O meu exemplar, comprado numa modesta livraria de obras em segunda mão, foi oferecido no Natal de 1981 pela tia Maria Antonieta à Guida «com um abraço apertado». Dói que tudo termine assim, entre o adelo e o esquecimento.
O comum existir
A cada uma das paixões um blog, onde escrevo o que bem poderiam ser cartas de amor. Amor literário, mas amor em qualquer caso, aquela devoção de leitor apaixonado.
De há muito que fui reunindo, um a um, os livros da Irene Lisboa. Alguns já em alfarrabista, em mau estado, daqueles que se não encontram.
Hoje, ao ler «Esta Cidade», um livro que ela escreveu em 1942, decidi-me a reservar-lhe este espaço.Irene do Céu Vieira Lisboa nasceu em 1892, faleceu em 1958. Usou o tempo de vida, a trabalhar como professora e a escrever sob o seu nome, como Manuel Soares, João Falco e Maria Moira uma obra hoje quase esquecida.
A sua obra essencial é esta:
* Treze contarelos (publicada em 1926).
* Um Dia e Outro Dia... _ Diário de Uma Mulher (poesia) (sob pseudónimo João Falco) (publicada em 1936).
* Outono Havia de Vir (poesia) (sob pseudónimo João Falco) (publicada em 1937).
* Solidão: Notas do Punho de Uma Mulher (poesia) (sob pseudónimo João Falco) (publicada em 1939).
* Fôlhas Volantes (poesia) (sob pseudónimo João Falco) (publicada em 1940)
* Esta Cidade! (contos, Irene Lisboa [João Falco], (publicada em 1942).
* Apontamentos (publicada em 1943).
* Uma mão cheia de nada, outra de coisa nenhuma (contos) (publicada em 1955).
* Voltar Atrás para Quê? (novela) (publicada em 1956).
*O Pouco e o Muito. (1956)
* Título Qualquer Serve (novela) (publicada em 1958).
* Queres ouvir? Eu Conto _ Histórias para Maiores e mais Pequeninos (publicada em 1958).
* Crónicas da Serra (publicada em 1958).
* Solidão II (prosa) (publicada em 1966).
* Versos Amargos (publicada em 1991).
É uma literatura do comum existir, uma escrita de uma extraordinária existência.
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