Regressei ontem aqui. Ter insónias tem vantagens: não conciliamos o sono, mas reconciliamo-nos com o mundo que deixámos na sonolência que é o quotidiano, ilusão de vida desperta.
Fui buscá-lo à estante. Li-o na edição da Presença, aquela que amorosamente Francisco Espadinha editou, bem como à obra [quase] completa, hoje, diria, totalmente esquecida.
Recordo aqui a capa do original que ainda não consegui encontrar, eu que procuro reunir todos os seus livros, os primeiros ainda com pseudónimo masculino, tantos e tantos em edição de autor.
Irene Lisboa já não o viu publicado pela Portugália, trazida à luz no ano de 1958, ano em que, no mês de Novembro, faleceria.
Iniciei a leitura e, ei-lo, o pequeno e profundo mundo vindo de uma janela de um comum existir, mas olhado com uma tal delicadeza de sentimentos e recato de sensibilidade que só a revolta contra a solidão consegue turbar.
Livro tristonho, como tanta da sua escrita, livro de cansaço, livro, como a sua personagem inaugural, de quem «já não sabia ter desgostos». Livro sobre os pobres que são bandeira de uma causa, que «as pessoas vão-se acostumando à pobreza. Então não vão? Vão-lhe caindo a pouco e pouco nas garras. Cada dia se vão sentindo mais pobres, mais pobres...e vão adquirindo novos hábitos.».
Há neste momento de escrever doçura e, no modo de, pela Literatura, ver a vida, infinito amor por consumir, «inspiração de uma mulher que se vê com uma janela escancarada à frente e com o coração oprimido».
Li dois dos seus contos, diria, duas das suas narrativas. Guardei perto para retomar. Sem a complexidade labiríntica de Clarice Lispector, há, logo no texto que inaugura a obra, O Limão, algo que lembra a autora de A Mulher que matou os peixes. E por falar nela, veio à mente o que escrevi [aqui] e que tanto de aplica ao que uma noite de insónia me fez viver: «Não importa quanto tempo levamos a ler um livro nem se interrompemos a leitura, como quem passeia e se senta em cima de uma pedra ou decide adormecer num momento da viagem. Não importa se não lemos todos os livros que há para ler, nem se somos ignorantes em relação aos "incontornáveis" como dizem alguns ditadores do gosto e tiranos da erudição obrigatória.». Não importa, de facto.